quarta-feira, 3 de junho de 2015

AURORA CONSURGENS


"Todos os bens chegaram até mim ao mesmo tempo que ela, essa Sabedoria do Sul que sai para pregar fora, faz ouvir sua voz nas praças públicas, grita nos ouvidos das multidões, expõe-se na entrada das portas da cidade, dizendo: 'Vinde a mim e sede iluminados, e vossas operações não virarão confusão; todos vós que me desjais seres agraciados com minha riqueza. 
Vinde então, filhos, e eu vos ensinarei a ciência de Deus'."
São Tomás de Aquino




Ibn Umail enumera todos os nomes da pedra filosofal que encontrou nos mais diversos autores, nomes que vão desde os mais nobres aos mais aviltantes, por aí querendo dizer da dificuldade de nomear e exprimir a sublime experiência da descoberta (revelação) do segredo da alquimía. Zosimo é um dos autores referidos e foi na realidade um dos importantes alquimistas gregos do séc. III cuja obra chegou até nós. 

Os seu tratados dirigem-se pretensamente a uma companheira discípula, Teosobeia, descrita como inicianda, e deixando ver como desde o mítico Moisés com Maria, Flamel com Perrenelle, ou a figura feminina do Mutus Liber oficiando no laboratório, o “feminino” é a constante que completa e permite que a obra seja bem sucedida. Michael Maier dirá, na Atalanta Fugiens, que o Sol precisa da Lua como o galo precisa da galinha. Ibn Umail também, na sua enumeração dos símbolos, tinha referido o galo e a galinha, mostrando o que Maier aqui demonstra: a copulação que é conjunção, na linguagem mais depurada de um Jung ou uma Marie-Louise von Franz, ao ocuparem-se da aurora consurgens e seu conteúdo mítico e simbólico.

Ora pela simbólica numérica, ora pelas figuras e suas legendas, verificamos sempre a alusão aos dois princípios fundadores da criação - evolução - integração das forças do Universo; e em paralelo com elas das pulsões e energias que motivam e conduzem o comportamento humano; neste as forças são as que respeitam ao corpo, espírito e alma e nos devem poder elevar a um superior entendimento do que somos (fomos e seremos) pois, como no ovo do alquimista, que Maier representa numa das suas gravuras, tudo o que virá a ser já no uno está contido, do primeiro princípio emanará todo o desdobramento que ele comporta.

No emblema XX1 da atalanta Fugiens, Maier escreve o seguinte:
“Do macho e da fêmea faz um círculo, depois, a partir dele, um quadrado e a seguir um triângulo.
Faz um círculo e terás a pedra dos filósofos.”

Aqui deparamos com o que se pode chamar a obra do geómetra. Mas o círculo inequivocamente nos remete para o andrógino de Platão, arquétipo de uma completude perdida, e que só o humilde trabalho do alquimista ou a entrega do místico permitirão recuperar.

Onde entra então neste momento a aurora consurgens? Trata-se de um pequeno tratado de tom simbólico e alquímico, inspirado no cântico dos cânticos, e atribuído a São Tomás de Aquino que o teria ditado, ou escrito, próximo do momento de morrer, o que lhe conferiria a importância de uma espécie de testamento espiritual, em pouca consonância com o rigor da sua doutrina “tomista”. Pois pela aurora passa o sopro de um verbo alucinante, que descompõe o esprírito e a alma, deixando a nú a força da paixão incontrolada e sofrida ,na entrega como no desencanto do abandono.

A amada do cântico surge com a beleza da aurora nascente. Será ela a face oculta de Deus, a Shekina que tem assento a seu lado como entidade que participa do Belo na criação? Ocuparam-se deste tratado Marie-Louise von Franz, como já disse, e Bernard Gorceix, grande especialista de alquimía, a quem se devem muitos estudos nessa área. Ambos traduziram o tratado e salientaram nele a dimensão simbólica e alquímica.

Gorceix conclui, na sua análise, que estamos basicamente perante uma “colagem” de textos alquímicos provenientes, entre outros, de Ibn Umail, e dos textos bíblicos do Cântico dos Cânticos. De uns provém o tom misterioso e profético, anunciador de uma verdade suprema revelada, de outros o misticismo de uma paixão intensa entregue e dolorosa como a maior paixão humana que fosse possível conceber. Desta mistura confusa, para não dizer prolixa, nasce em parte a sedução que leva o leitor a tentar decifrar o que de mais profundo se possa esconder no texto. No cap. XII, sétima parábola, diz a amada: “eu sou a mediadora dos elementos, eu reconcilio os contrários. Arrefeço o que é quente e vice-versa. Humedeço o que é seco , e vice-versa. Amoleço o que é duro, e vice-versa. Eu sou o fim. O meu bem amado é o princípio. Em mim se esconde a obra inteira ...farei viver e farei morrer...eu e o meu bem amado somos só um...”

A amada (ou a Pedra filosofal) medianeira dos elementos, da sua transformação. Dispensa a vida e o amor, num caso, dispensa a sabedoria, noutro. Na longa resposta do amado encontramos o Cântico, mas também a reflexão de Calid, outro sábio alquimista, dos citados, além de Ibn Umail (Senior no seu nome latino): “Disfrutemos da nossa cópula de amor e gritemos na alegria da nossa dança: eis como é agradável habitar dois em um! Ergamos três tendas para nosso uso, a primeira para ti, a segunda para mim, a terceira para o nosso filho! Uma corda tripla resiste melhor! “Estamos de novo perante o mistério de Maria Profetiza: do um nasce o dois e deste o tres como quarto. Daí a sua força. O par divino e humano andrógino, os três princípios e a corda, mais um nome da Pedra resistente à fragilidade humana.

Sugestão de leitura, L’ Aurore a son Lever, trad. et preface Bernard Gorceix, Arma Artis, 1982.

Em tempo: vem a propósito citar Hesteau de Nuysement “la vraie Chimie...suit pas a pas le train de L’ Evangile.” Postado em Simbologia e Alquimia




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